segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Não tá morto quem peleia

Sou uma escritora desesperada por salvar suas – últimas – palavras. Tanto que, antes mesmo de me encontrar com o aterrorizador “cursor da página em branco”, procurei o atalho do teclado para salvar o que viesse a escrever. A vida bem que poderia ter desses atalhos de excluir sem mandar pra lixeira que se torna nossa mente, sempre em busca do futuro enquanto se apega ao passado.

Saí do esconderijo, da cela. Muitos, mesmo presos, estão soltos. Outros, como eu, conseguem transformar qualquer cômodo em uma prisão, até mesmo a vastidão que o horizonte alcança.

Vesti meu casaco marrom de inverno, mas já é verão; pelo menos é o que me diz o calendário. Ele tenta estabelecer contato comigo todos os dias, mas me concentro nas paisagens que os meses estampam e esqueço os números. Nunca soube lidar bem com eles.

E, por fim, como se escrever fosse um ritual, servi uma taça de vinho seco, eu nem gosto, mas foi o que sobrou de ontem. Dizem que a verdade aflora na presença do álcool e é ela que quero: a verdade. Agora estão todos presentes à minha espera.

Já posso confessar, enfim, que falhei: como mulher, como filha, como profissional, aliás, como empregada – ou melhor, colaboradora –, como amiga, como colega, como namorada, como estudante, como ser humano, como sonhadora, e em todas as demais funções que os meus vinte e seis anos assumiram.

Eu fracassei, passei da conta.

Quando comecei a última caminhada, nem deixei grãos ou fitas no caminho para poder voltar caso me perdesse. Eu estava certa de que isso não iria acontecer. Também, as aves poderiam ter comido os grãos e as fitas desbotariam ou quem sabe teriam maior serventia para outra pessoa que por ali passasse. O fato de não deixar rastros tinha muito mais a ver com não querer ser seguida do que com o medo de ter de voltar. Eu quis, sim, deixar tudo pra trás e vi que, ao não olhar pra trás, acabei não vendo a bagagem que estava carregando sobre minhas costas. Então, nada tinha ficado no passado, estava tudo ali tão perto quanto antes de eu partir.

Fui confiante, com uma felicidade rara – do tipo temporária, falsa, mas otimista, coisa que nunca fui. Afinal, não é todo ano que começa com uma formatura depois de quatro anos de suados pagamentos. Nem que se inicia num trabalho novo, na área em que se estudou, com um salário razoável, e em uma empresa promissora. Sem contar em realizar o tão sonhado “morar sozinha”. Quantos anos mesmo eu tinha? Não faz tanto tempo assim, mas parece que sim.

Foi lá nessa cidade ou nessa idade que conheci alguém muito especial, daqueles que o coração vê primeiro, antes dos olhos – porque os olhos, meus amigos, enganam muito.

O computador travou, o vinho está no final e eu também – travei e estou no final.

Reinicio, deixo a taça mais meio cheia do que meio vazia e sinto inveja dela.

Volto ao texto, à história. Onde foi que eu parei? Este foi o primeiro erro: eu não parei.

E aí vieram outros erros e algumas percepções: deixei de lado a família e os amigos também; podemos errar na escolha da área de atuação; o salário razoável se tornou menor que o necessário; dividir apartamento não é morar sozinha; de que adianta ser promissora se as portas não são igualmente abertas pra todos? São as atitudes que tornam as pessoas especiais ou apenas o que sentimos por elas ou ainda o medo de perdê-las?

É, eu tinha vinte e quatro. Uma menina.

Fiquei quase um ano carregando aquela bagagem que achei que tivesse deixado no passado e que estava aumentando a cada dia enquanto eu me fazia de forte até cair física e psicologicamente. Embora eu custasse a acreditar que meus problemas tinham um fundo absolutamente psíquico. Neguei pra todos e o fiz porque consegui me enganar por muito tempo.

Perdi a conta de quantos médicos conheci, quantas vezes fui atendida nos hospitais, quanto gastei em remédios, quanto meus olhos suplicavam ajuda, quanto tempo perdi caminhando sozinha em busca de um diagnóstico aceitável pra mim.

Perdi minha paz, meu descanso, minhas férias, meu sossego e o sono. Coisas que nem o dinheiro que perdi poderiam comprar.

Larguei tudo: planos, especialização, inglês, pessoas, projetos, sonhos...

Passei longos dias no escuro do meu quarto sem querer que o outro dia chegasse. Não era vontade de morrer, mas também não era uma forma de viver. O tempo é mais teimoso do que eu. Ele insiste em chegar e passar.

Quando tento me reerguer, mais um golpe. Nada de inesperado. Capítulo sobre o qual não pretendo/posso/quero/consigo/preciso falar. Saber que algo irá acontecer não é o suficiente para nos prepararmos.

E agora, depois de tanta coisa chorada amargamente, de tantos diálogos ensaiados, tanto desespero, eu estou tentando me arriscar novamente. Não com aquela felicidade rara de 2010, apenas com a consciência limpa de quem deve e quer seguir.

Tenho medo sim, mas estou procurando o que há de melhor em mim e é isso que quero deixar para as pessoas que amo. Mas apenas poderei deixar o meu melhor se eu encontrá-lo e se compartilhá-lo. E, para fazer isso, é preciso estar com essas pessoas que digo amar, as que são especiais pelas atitudes, pelo o que sinto por elas e, sim, pelo medo que tenho de perdê-las.

Eu sou uma escritora desesperada por salvar suas – últimas – palavras. E aqui a ambiguidade me salva. Quero guardar sim o último riso ou choro; as palavras finais, não pra saber o que foi dito, mas para lembrar da voz de quem as disse.

Assim encerro com mais um atalho do teclado. A vida não tem desses, e nem a morte é capaz de nos excluir definitivamente.

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